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CAPÍTULO IV.
SOBREVOANDO O DESERTO DE COBRE EM UMA AERONAVE.
“É simplesmente extraordinário. Eu nunca imaginei que pudesse existir um lugar assim.”
Vianne estava no parapeito da Goldenheart, uma elegante aeronave a vapor de hélice dupla, se segurando em uma das cordas para se inclinar para fora e enxergar melhor a paisagem à sua frente. No planalto, dentro de um cânion pontilhado por árvores verdejantes, a grande capital do Povo do Céu estendia suas torres de pedra vermelha e seus totens colossais até as nuvens. Inúmeras tendas cônicas ocupavam de forma organizada tanto o topo do planalto como o terreno ao redor, delimitadas por um muro que parecia ter crescido do próprio solo rochoso. Um sistema sofisticado de roldanas, velas de couro e hélices de pano percorria todo o lugar, subindo e descendo enormes plataformas de madeira apenas com a força do vento, domesticado pela magia do Povo do Céu. Parte dessas plataformas móveis percorria a face do planalto, permitindo um acesso fácil entre o pé e o topo, enquanto outras se erguiam como asas até as nuvens, dando ao local um aspecto ainda mais grandioso.
Era em uma dessas plataformas suspensas que a Goldenheart atracava, sendo amarrada pela tripulação com a ajuda de um grupo de nativos habilidosos que aguardava. Vianne não perdeu um segundo em aproveitar a parada para saltar e dar uma olhada melhor naquela cidade, deixando a capitã Jezebel cuidar das compras de suprimentos e outros afazeres. Uma senhora de cabelos grisalhos e brilhantes como uma teia de aranha veio em sua direção, envolta em um manto ornamentado que indicava uma posição de respeito como anciã. Ela parecia estar esperando para receber a Marechal, como algum tipo de diplomata local.
“Boa tarde, querida senhora. É uma honra estar no coração do Povo do Céu. A Guilda dos Aeróstatas já havia me contado sobre as maravilhas de Mahpiya, mas devo confessar que não esperava que fosse um lugar tão…”
“Civilizado?” disse a anciã com um risinho, como se já estivesse acostumada a ouvir aquilo. “Vocês de além-mar acham que vivemos em cavernas e tocas no chão como os animais, e sempre acho graça em como ficam surpresos ao ver nossa cidade. Mas seus olhos não estão enganados, Mahpiya é mais do que apenas uma grande aldeia. Se estiver interessada em negócios, irei te mostrar a nossa praça do mercado, que recebe mercadores de peles do sul do deserto até as montanhas nevadas do norte. Ou talvez esteja aqui para visitar nosso santuário de sabedoria, onde os xamãs e engenheiros de toda a nação trocam suas experiências e as transmitem aos mais jovens. Nossa ‘universidade indígena’, como vocês windleses costumam dizer com espanto.”
“É mesmo um lugar incrível, boa senhora” murmurou Vianne com um sorriso constrangido, sentindo pelos olhares direcionados a ela pelos nativos que sua presença como militar não era muito bem vista. “Infelizmente estou apenas de passagem para o oeste. Espero poder voltar em uma ocasião melhor.”
“O vento que sopra do oeste agora traz o fedor de pólvora e cinzas que caem como neve.” respondeu a velha encarando a Marechal com um olhar franco. “E com as disputas por terras e as pragas matando nossos irmãos no leste, sinto que não existam mais boas ocasiões para sua gente vir até aqui.”
“Como uma das oficiais encarregadas pelas colônias de Roonock, farei tudo o que estiver ao meu alcance para assegurar que Mahpiya permaneça imperturbada e os conflitos com seu povo sejam apaziguados” afirmou Vianne sentindo o estômago gelar. Sabia que não seria nem um pouco fácil chegar a um acordo com a Coroa sobre a situação dos nativos, e no momento tinha uma longa e imensurável jornada pela frente, mas quando retornasse iria lutar para que nem mais um único tiro fosse disparado na direção daquela gente que tanto havia ajudado os colonos a sobreviver no Novo Mundo.
“Não é essa minha única preocupação. Nossos sentinelas totêmicos podem nos proteger dos canhões e da magia de seus homens, ainda que eu não deseje ver Mahpiya cercada pelo sangue de meus filhos. Sinto que suas palavras são sinceras, então irei lhe dar um aviso. Não é apenas ouro, prata e metal do céu que seu povo irá encontrar abaixo do solo do deserto. Existem coisas nesse lugar que se alimentam da cobiça no coração dos homens, e elas se escondem nos mesmos veios escuros onde está aquilo que vocês tanto procuram”.
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CAPÍTULO V.
NO INCRÍVEL TATU MECÂNICO DA SENHORITA THUNDERFOX.
Não havia nada além de aridez para além dos territórios do Povo do Céu. O deserto se estendia para todas as direções, como se o mundo inteiro estivesse resumido naquela vastidão de pedra e poeira. A expedição havia sido um fracasso. Três dos quatro povoados de mineração windleses haviam sido perdidos. Crooktown estava ocupada por mortos-vivos que caminhavam sob o sol escaldante, deixando a carne secar e apodrecer até expor seus crânios sorridentes. Sandwell era uma cidade-fantasma tomada por uma praga desconhecida, que tinha levado não apenas a vida como também a cor do vilarejo, transformando tudo em uma desolação cinzenta. E Thunderscape teve sua população exterminada quando os autômatos que trabalhavam no lugar enlouqueceram após terem sido possuídos por alguma entidade sombria desenterrada nas minas. A senhorita Thunderfox, a única sobrevivente dessa última comunidade mineradora, acabou por concordar em levar Vianne para além do deserto após a Marechal ter dispensado suas tropas cansadas e feridas em Tortoise’s Crossing, o povoado restante, com ordens para se recuperarem e prestarem ajuda aos colonos no que fosse necessário.
“São eles denovo?” gritou Vianne sobre o motor ruidoso do tatu mecânico que conduzia as duas através da planície árida, trotando de forma vigorosa. Na distância, uma nuvem de poeira ia se aproximando aos poucos, por mais que o autômato encardido de poeira tentasse acelerar com sua pesada carcaça de metal.
“Esses cabeças de lata não desistem fácil!” respondeu a inventora afastando os cachos loiros do óculos de proteção. “De algum jeito eles não precisam mais parar pra esfriar os mecanismos. Mesmo quando tão parados eles ficam fumegando, como se tivesse alguma outra coisa queimando dentro deles além de carvão e água”.
Logo a silhueta dos cavaleiros autômatos surgiu no meio da poeira, ficando cada vez mais próximos. Os olhos de seus cavalos de ferro brilhavam como lanternas no crepúsculo que se aproximava e tingia o céu de vermelho. Vianne encaixou a última peça do rifle e demorou alguns instantes fazendo mira até acertar em cheio uma perna dianteira de uma das montarias mecânicas, fazendo com que ela desabasse levando junto seu condutor. A inventora por sua vez acendeu uma banana de dinamite enquanto conduzia as alavancas do tatu com os pés e a lançou para trás, levantando uma forte explosão de areia que retardou a perseguição por alguns instantes.
“Eles são muitos! Não dá pra acertar todos antes que cheguem até nós!” avisou a Marechal se abaixando no banco de couro para escapar dos tiros que ricocheteavam na carapaça do veículo.
“Volta pra lá! Eu tenho uma surpresinha pra eles!” Retrucou a senhorita Thunderfox com um sorriso de alguém que só podia ter perdido o juízo. Ela girou uma manivela abaixo do painel de controle e Vianne ouviu um compartimento se abrindo às suas costas. Sendo um voto de confiança sua única opção, ela se levantou e viu que uma arma robusta estava montada na traseira do autômato, com uma fileira de balas vindo do que parecia ser um compartimento de munição até o cano cilíndrico com várias aberturas.
“Achei que só a Mitternacht tivesse essas coisas!” disse a Marechal com espanto, procurando uma posição que não a deixasse muito exposta para atirar. “O que eu faço com isso? É difícil de mirar!”
“Só gira a manivela e atira no que der, tem muita bala aí dentro!” respondeu a inventora tentando manter o tatu mais ou menos estável no tiroteio. “Eu me inspirei nas metralhadoras giratórias da Mitternacht, mas eu mesma projetei essa daí! Primeiro eu usei uma liga de metal mais leve…”
“Desculpe, mas não dá para te ouvir agora!” Vianne berrou entre dentes cerrados, metralhando os autômatos, cavalos, rochas, cactos e tudo mais que estava à sua frente, com exceção do céu que deixava escapar os últimos raios de sol enquanto era iluminado pelo clarão efêmero das explosões.
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CAPÍTULO VI.
PARA A COSTA OESTE EM UMA CARROÇA COBERTA
Vianne já não conseguia lembrar a quantos dias estava viajando sozinha pela imensidão selvagem que se escondia além do Deserto de Cobre. A carroça que tinha montado com ajuda da senhorita Thunderfox havia se tornado seu novo lar, especialmente depois de todos os remendos e aprimoramentos feitos durante a travessia das infindáveis planícies, montanhas e rios. O motor à vapor improvisado que a inventora havia lhe deixado como um presente de despedida havia funcionado por apenas algumas semanas, especialmente depois que o inverno chegou e ficou a cada dia mais difícil arrumar lenha seca para a caldeira. O calor seco do Deserto de Cobre havia dado lugar a um frio sepulcral, que cobria tudo ao redor em um silêncio branco, quebrado apenas por nevascas fantasmagóricas, que ameaçavam soterrar a carroça com um manto gelado. Foi apenas a engenhosidade de Rivenwood que a manteve viva, e antes que seu corpo se entregasse ao torpor e a febre ela conseguiu construir uma vela usando os canos de cobre da estrutura do motor e um de seus lençóis, conectando tudo ao timão de controle da carroça.
Na nevasca seguinte, Vianne deixou que a ventania conduzisse a carroça através das campinas cobertas de neve e dos lagos congelados, mantendo uma caneca de chá quente ao lado para se manter acordada enquanto tentava enxergar na escuridão com a luz fraca das lanternas cobertas ofuscando seus óculos de couro. A luz de fogueiras a atraiu até uma pequena aldeia do Povo do Céu, onde conseguiu trocar uma pistola Kingsley e algumas munições por peles novas para se proteger do frio, além de informações sobre o melhor caminho a seguir. Por alguns dias ela permaneceu entre os nativos, descansando da febre e os ajudando a caçar com pólvora, ou compartilhando de sua comida enlatada quando as tempestades não os deixavam ir muito longe. Com a ajuda da medicina do xamã da aldeia, ela logo estava com o vigor renovado e pronta para partir, antes que ficasse presa nas planícies outra vez.
Quando finalmente alcançou as florestas ao pé da cordilheira de montanhas azuladas, ela se sentiu como se estivesse diante de um mundo novo. Nem mesmo o Povo do Céu se aventurava além das margens sombrias daquela vegetação, e os imensos e velhos pinheiros lhe lembravam dos bosques de fadas de sua terra natal, selvagens e cheios de magia antiga. Estava de volta à sua juventude agora, as pequenas fugas para os arvoredos da propriedade de sua família, que sempre terminavam com um vestido rasgado e um longo sermão sobre comportamentos inapropriados para uma dama. “Mas dessa vez ninguém vai me impedir de ir aonde eu quero” falou para si mesma satisfeita.
Consertar o motor para seguir em frente estava longe de ser a melhor das ideias. Mesmo que ainda fosse possível, seria arriscado demais seguir pelo terreno acidentado e desconhecido das montanhas. Mas as orientações do Povo do Céu já haviam lhe dado uma ideia do que fazer. Ela havia parado perto de um largo rio que vinha do norte e serpenteava entre a cordilheira. Com o fim do inverno, uma corredeira estava se formando, e provavelmente ficaria mais forte com os outros cursos d’água que se juntariam a ele descendo das montanhas. Vianne se desfez da caldeira do motor e manteve apenas o necessário na carroça, a deixando leve o suficiente para ser puxada até a margem e calafetada para flutuar nas águas como uma balsa.
A viagem pelo rio começou mais tranquila do que o esperado. A beleza da paisagem animava a Marechal a seguir em frente, entre as sombras das grandes árvores que se enfileiravam como sentinelas. Foi entre as raízes de um dos pinheiros que Vianne encontrou seu novo companheiro de viagem. O filhote órfão de lontra-dragão era um bocado temperamental, mas não parava de segui-la desde que ela havia oferecido uma das estranhas trutas de pelagem branca que tinha conseguido pescar no rio. Em um fim de tarde, a Marechal descobriu a criatura dormindo entre as roupas de seu varal que tinha acabado de derrubar, e resolveu treiná-lo como a um cão de guarda, tendo um sucesso razoável. Keoonik, como havia batizado a lontra, crescia rapidamente e passava longas horas nadando ao lado da carroça, ajudando a afastá-la das criaturas perigosas e furtivas que perdiam a timidez cada vez que a floresta ficava mais fechada, como as feras do rio que erguiam seus longos pescoços da vegetação aquática e os gigantes peludos com grandes pés que espreitavam entre os troncos na margem.
Numa manhã de densa neblina, Vianne despertou com um som estarrecedor, como se o mundo estivesse se abrindo ao meio. Keoonik entrou agitado na parte coberta da carroça, derrubando o gramofone que ainda tocava enquanto a Marechal havia adormecido. “O que foi agora? Outro monstro?” Saindo para ver o que tinha acontecido, ela mal teve tempo de tentar virar antes da carroça se chocar contra uma grande pedra. As corredeiras tinham ficado mais fortes durante a noite com a chuva que havia caído sobre as montanhas, e a carroça havia se soltado de suas amarras. Vianne caiu na água turva e se debateu com os cabelos soltos atrapalhando sua visão, se chocando contra o casco de um arquelônio que nadava pela correnteza. Se agarrando na grande tartaruga, ela conseguiu se estabilizar e tomar impulso para a margem, onde Keoonik corria de um lado para o outro assustado.
Encharcada, suja de lama e com seu uniforme arruinado, Vianne não pôde deixar de rir da situação ao pensar no que sua família diria. “Vamos lá Keoonik, isso aqui não é brincadeira. Vamos ver onde essa carroça foi parar”. Procurando por toda a manhã entre as pedras do rio, a Marechal conseguiu recuperar a maleta com o rifle, algumas das peles do Povo do Céu e a sua bolsa de pertences pessoais. Com os restos de madeira da carroça ela acabou fazendo uma fogueira para poder se aquecer, secar as vestes e assar os mexilhões que havia conseguido pegar com a ajuda da lontra-dragão. Com o ânimo renovado, Vianne decidiu subir até o topo de um dos montes mais próximos, para poder ver o melhor caminho que poderia seguir dali.
A longa e exaustiva escalada levou o resto do dia, mas a beleza da vista que surgia com a névoa sumindo e a companhia de Keoonik eram suficientes para que ela continuasse. Uma trilha tosca acompanhava o declive rochoso, sinalizada por totens rústicos que pareciam bem diferentes daqueles feitos pelo Povo do Céu. As cabeças de pássaro daqueles totens, com longos bicos e grandes olhos enigmáticos, a intrigavam sobre que tipo de comunidade vivia naqueles vales distantes, mas o pensamento fugiu quando Vianne finalmente alcançou o topo do monte. Além das montanhas, florestas e lagos que se estendiam tingidos pelo laranja do entardecer, o grande oceano se estendia iluminado pelo sol que lentamente mergulhava no horizonte. Aquele era o fim da jornada, o outro lado do continente de Asabikesh que nenhum windlês havia visitado antes. Pegando sua faca da cintura, Vianne Rivenwood escreveu seu nome no tronco da maior árvore que crescia naquele monte, um lugar que futuramente se tornaria um ponto de referência a todas as caravanas vindas do leste em busca de uma vida melhor nos férteis vales do Oeste.