You insult me in my home, you’re forgiven this time
Things go well, your eyes dilate, you shake, and I’m high?

(Alice in Chains – Sludge Factory)

Sobre meu relato a respeito da grande enchente que devastou o vilarejo industrial de Harbor Mill na última primavera e os eventos que culminaram na pavorosa catástrofe que carregou em suas águas mais de uma centena de vidas, peço que aqueles que o tenham em mãos atentem ao que tentarei extrair de minhas ainda confusas memórias. Ainda que os assuntos envolvidos na resolução dessa tragédia possam já estar acima da alçada de minha posição, vejo como minha obrigação alertar sobre a ameaça que pode estar ainda furtiva entre aquelas ruínas encobertas por entulho e lama, e que muitos colonos do Novo Mundo podem estar desinformados a respeito.

Meu nome é Zachary Allen, e como membro da Milícia Cinzenta do Império, havia sido designado como oficial responsável por Harbor Mill, uma responsabilidade que aceitei com dignidade e honra mesmo sabendo que isso me deixaria isolado da agitação das colônias de Asabikesh. Ter a sensação de dever cumprido perante a Coroa era para mim mais significativo do que os confortos e frivolidades advindos da capital, e a tranquilidade do vilarejo cercado de florestas e banhado por um mar de ondas preguiçosas muito me cativava, fazendo com que eu realmente não me importasse em despender minha carreira naquele povoado esquecido e remoto.

Naquela primavera úmida o clima estava mais cerrado que o habitual, e a chuva era quase incessante. Toda a paisagem havia se tornado um melancólico borrão escuro, e o gotejar das infiltrações era minha companhia habitual durante as parcas horas de sono. O pouco movimento no vilarejo diminuíra ainda mais, com apenas um navio ocasional balançando suas velas de forma fantasmagórica no cais. Como raramente haviam ocorrências a serem registradas, eu passava meu tempo entre as patrulhas abrigado no casebre que me havia sido oferecido próximo ao solitário farol, fumando enquanto mirava o soturno oceano da janela embaçada situada nos fundos de meu aposento.

Já estava escuro quando ouvi as batidas apressadas em minha porta e a entreabri para me deparar com os olhos púrpura de Cardis, uma jovem funcionária do governo que cuidava de questões burocráticas em Harbor Mill. Seu sobrenome não era a única coisa que sabia desconhecer a seu respeito. Apesar da aparência franzina, com os cabelos esbranquiçados e curtos sempre cobertos por um simples chapéu de feltro, ela me dava a impressão de alguém mais velho e competente do que tentava parecer. Uma vez, disseram-me que ela era filha de uma bruxa do mar, e sendo isso verdade ou não, penso que talvez tenha se refugiado naquele vilarejo distante para fugir de alguma adversidade obscura em seu passado.

De qualquer forma, ela não tinha se dirigido até minha cabana apenas para uma visita, e quando nem sequer fez menção de entrar para se proteger da água que açoitava as ruas, eu sabia que a questão era urgente. ‘”Tem uma ocorrência na praça central. Você precisa vir'” disse ela na sua voz sempre reservada, dando tempo apenas para que eu pegasse meu casaco, a lanterna e as armas do ofício. Foi assim que adentrei a chuva e a escuridão naquela que seria uma extensa noite, a primeira dentre as mais fatigantes desde que eu assumira meu posto. Naquele momento, preocupado apenas em responder o chamado repentino, eu sequer imaginava o esquema perverso que se encontrava em curso.

Caminhar rapidamente pelas vielas de terra próximas ao cais era uma atividade penosa com o tempo inclemente, e era impossível evitar as poças maiores que tremeluziam com as chamas dos poucos lampiões ainda acesos no interior das modestas residências de madeira carcomida. Ali era o lar dos pescadores e carregadores das docas, que espiavam minha passagem de forma furtiva atrás das janelas acortinadas por redes de pesca. Eles eram os habitantes mais antigos do vilarejo, e os mais desfavorecidos também. Era uma gente desagradável e suspeitosa, mas não eram de causar problemas, desde que ninguém se intrometesse no modo de vida frugal a que estavam acostumados.

Quando cheguei até a praça central, um grupo de residentes da área em pesados sobretudos e guarda-chuvas cercavam um corpo estendido em uma calçada como um bando de corvos negros. Um odor desagradável de peixe impregnava o ar, e apenas quando me aproximei percebi que era exalado pelo indivíduo que era objeto daquela curiosidade. Estava morto, cercado por uma nuvem de sangue escuro diluído na água que o cobria parcialmente. As pernas e o tronco não mostravam nenhum ferimento mortal, possuindo apenas algumas escoriações e manchas de lama. Tentei avistar seu rosto, mas então notei que estava mergulhado em um bueiro aberto, que rugia alimentado pelas águas da chuva.

Apenas quando me acerquei mais e puxei o cadáver pela camisa foi que percebi com um engulho na garganta que não restava mais nada do pescoço para cima. A cabeça do morto havia sido arrancada de forma brutal, deixando pedaços da carne pálida da vítima pendendo da ferida aberta. Tentando não fitar diretamente aquela visão repugnante, arrumei o defunto sobre a calçada e me ajoelhei esfregando a mão sobre meu rosto para tentar conter a náusea. Não era apenas o ferimento grotesco e o fedor incessante de peixe que me fazia embrulhar as entranhas. Havia algo naquela situação que começava a me perturbar imensamente, embora eu ainda não fizesse a menor ideia do que estava acontecendo.

Perante os olhares de pavor dos presentes que aos poucos se aglomeravam naquela cena sangrenta, estava convicto de que deveria encontrar o quanto antes uma resposta para o enigma atroz que era aquela morte. Olhei em volta buscando pela grade enferrujada que deveria tampar aquela boca-de-lobo, ainda esperançoso de que aquilo tivesse sido apenas um terrível acidente causado por um escorregão fatal. Porém, iluminando a rua escura encontrei a proteção de ferro arremessada vários metros abaixo, e a forma como estava dobrada me sugeria de forma perniciosa que havia sido arrancada por mãos fortes o bastante para rasgar um pescoço sem nenhuma dificuldade.

Com a noite avançando e a chuva sem dar sinais de trégua, não restava muito o que fazer naquele momento além de solicitar que ensacassem o cadáver enquanto eu buscava relutante por alguma pista nos bolsos de seu macacão. Não havia nada, salvo algumas ferramentas e objetos pessoais insignificantes. Era intrigante ele estar usando um uniforme do moinho ao lado da represa sem nenhuma identificação, mas o que realmente me assombrou foram as suas mãos, inteiramente pálidas e cobertas por uma pele rançosa e irregular, que formava membranas entre os dedos. Repentinamente, senti quase um alívio por não ter que olhar para o rosto daquela incógnita vítima.

Nenhuma das testemunhas sabia exatamente o que tinha acontecido. Mesmo os que se aventuravam fora de casa dificilmente enxergariam algo na visibilidade precária causada pelo aguaceiro noturno. O carroceiro apavorado que tinha encontrado o corpo dizia ter ouvido um grito abafado, seguido pelo som de algo pesado se chocando contra a via alagada. Seja como fosse, o homem parecia visivelmente perturbado e olhava com uma aversão quase obstinada para o estranho cadáver do operário. O único indício confiável era o macacão industrial do moinho, e concluí que era para lá que deveria me dirigir na manhã seguinte para poder ao menos descobrir a identidade do morto.

Sob um alvorecer cinzento e lúgubre eu caminhava pela escadaria de pedra que seguia até a entrada do nevoento moinho. Cardis havia ficado na prefeitura para ajudar a amenizar o pânico que começava a crescer dentro do populacho à medida que a notícia do suposto assassinato violento se espalhava. Minha única companhia eram os homens de expressão apática que seguiam para o expediente. Não poderia dizer que meu estado de espírito estava muito melhor que o deles. Me sentia profundamente abatido com o fim de minha tranquilidade na outrora pacata Harbor Mill, e o senso de trabalho a ser feito era a única coisa que me mantinha andando naquele momento.

O interior do edifício era ruidoso e opressivo, com paredes se descascando e grandes maquinários corroídos de ferrugem rangendo suas titânicas engrenagens enquanto exalavam uma nuvem de vapor fraco. Mesmo com o lugar em pleno funcionamento tudo ao redor parecia úmido e frio, como uma tumba submersa. Os funcionários caminhavam como tristes fantasmas por aquela paisagem, e enquanto os observava pude começar a entender a razão dos habitantes do vilarejo em geral não simpatizarem com aquela gente. Todos portavam identificações em seus uniformes e não tinham qualquer deformidade física, mas a indiferença com que trafegavam naquele ambiente insalubre me deixava muito desconfortável.

No escuro andar administrativo a atmosfera era ainda pior. Dos corredores fantasmagóricos, uma galeria de quadros extravagantes exibindo todo tipo de criatura marinha me observava com os olhos esgazeados de suas imagens desbotadas. Aquela decoração sinistra conseguia apenas agravar os pensamentos que se aninhavam em minha mente, sobre estar descobrindo um abismo maligno oculto nas entranhas daquele vilarejo. Eu apenas queria interrogar o diretor do moinho e deixar sem demora aquela fábrica funesta, mas ao chegar diante da porta que levava ao fétido escritório principal fui assaltado por uma visão que me atingiu com um golpe ainda mais forte de horror.

Inclinado em sua cadeira, o diretor me recebia inerte, com um buraco ensanguentado na janela encardida ocupando o lugar onde deveria estar sua cabeça. A luz débil que atravessava as vidraças esverdeadas tornava a cena ainda mais nauseante, e tive que me segurar na porta para me recompor daquele cenário de pesadelo. Dois trabalhadores estavam esparramados sobre o chão, mortos da mesma maneira, e enquanto adentrava notei que tinham a mesma pele escamosa daquele que havia sido encontrado na praça da cidade. Recuei então um passo quando percebi que havia uma inscrição grosseira no assoalho, feita com o sangue escuro e oleoso das vítimas. Uma única palavra: ‘ESKUMALHA’.

Estava tudo errado em Harbor Mill. Da noite para o dia, o lugarejo onde pretendia desfrutar de uma vida tranquila tinha se tornado um palco de abominações, e uma monstruosidade ainda pior as estava caçando. Eu nunca tinha dado muita atenção ao moinho, e naquele momento me assombrava a letargia dos trabalhadores, que continuavam a operar as máquinas sem desconfiar de nada. Documentos amarelados e livros de anotações haviam sido mexidos e espalhados na cena do crime. Sem perder mais tempo, recolhi o que podia e me retirei para outro aposento, obstinado a descobrir algo que ao menos me ajudasse a entender o que estava acontecendo, salvando minha mente das próprias especulações.

Enquanto um estrondoso temporal atingia a fábrica, eu vasculhava os papéis sob a luz de minha lanterna, mas nada do que eu encontrava conseguia trazer alguma sobriedade para aquele caso macabro. Ao contrário, eu parecia estar diante de um insólito esquema que consistia em alienar e transformar aqueles trabalhadores do moinho em alguma espécie de escravo especializado, por meio de experimentos e de algum tipo de culto empresarial compulsório. Aqueles que, após um processo gradual, estavam prontos para serem ‘recolhidos’, como era o termo usado nos documentos, eram então levados até um ‘mestre’ que, e essa parte me vi sendo obrigado a reler, os aguardava no fundo da represa.

O moinho nada mais era do que um criadouro de condenados, fabricados para algum propósito inumano. Continuando a ler, descobri que a longo prazo toda Harbor Mill seria incluída nesse esquema terrível. Eu não poderia me permitir ficar ali sentado, deixando que aquela insanidade seguisse adiante. Recolhi todas aquelas evidências para apresentá-las ao Império, mas no momento em que me levantei avistei ao longe pela janela um estranho vulto em uma capa de chuva, parecendo encarar as águas turbulentas do dique. Foi nesse momento que tudo ao redor estremeceu, e com um rugido colossal a parede da represa se partiu, libertando sobre o vilarejo um dilúvio de morte e desespero.