Introdução – Biringan domingo, out 22 2017 

As crianças da mata sempre eram a pior parte da viagem, mas nada havia preparado o garoto para aquele dia.

Ding já estava acostumado com as longas travessias de barco através da Praia dos Ossos em Biringan até a área rural nos arredores da capital do arquipélago, onde campos de arroz e florestas de bambu dominavam a paisagem. Era ali que o Tio sempre o levava para ajudar a vender o produto da pesca do dia. O garoto achava aquele um trabalho simples porém ingrato, e o fedor do pescado nunca ia embora de suas roupas. Para piorar, naquele dia o mar estava estranho depois do furacão que havia atingido as ilhas, com manchas de um vermelho ferrugem que faziam aumentar o mau cheiro.

O barulho do motor também não estava ajudando o trajeto a ficar menos desagradável. A maioria dos pescadores da região usavam barcos típicos de junco com velas triangulares, mas o Tio insistia em um motor a vapor que o garoto tinha ajudado a fabricar em uma oficina da cidade, um cilindro dilatado de bronze com engrenagens de ferro que usava bambus ocos como canos de escape. Ao menos aquela máquina trêmula tornava a viagem mais rápida, e ajudava a espantar os pássaros Lagan que sempre vinham em bando como moscas até o barco, tentando abocanhar um tentáculo de polvo ou uma barbatana de arraia de dentro da embarcação com seus bicos cheios de dentes. Mas era só desembarcarem nas fazendas e desligarem o motor que os pássaros voltavam a ficar ousados, e junto com eles vinham os caranguejos carniceiros e os sabujos imundos da costa, que Ding e o Tio tinham que espantar com tochas de palmeira ou tiros de mosquete. Mas eles não eram incômodo nenhum comparados às crianças da mata.

Elas começavam a aparecer sempre no final da tarde, espiando Ding por entre as raízes suspensas das figueiras flutuantes ou as folhas carcomidas de bananeira-rosa. Os animais não chegavam perto delas, mas com exceção deles e do garoto, ninguém mais parecia notá-los. Elas pareciam muito novas e vestiam apenas trapos e, no começo, Ding achou que eram apenas crianças curiosas daquela vizinhança humilde. Mas não demorou para ele notar que havia nelas algo de errado e assustador. A pele era cinza como uma nuvem de chuva, e os olhos brilhavam como velas ao entardecer, mais parecendo um par de vagalumes ou fogos-fátuos na beira da estrada. Apesar da ignorância das outras pessoas, elas raramente saíam dos esconderijos de onde observavam, mas Ding tinha a impressão de, às vezes, depois que escurecia, ver pequenas figuras correndo na beira da selva, longe das tochas e dos lampiões dos barcos. Foi em uma dessas ocasiões que ele viu pela primeira vez algo que parecia um adulto perto delas, uma mulher grande e inchada olhando para a janela de uma cabana na beira da água. Uma cabana cujo o dono havia morrido durante o sono, seu tio lhe dissera depois.

E naquele dia, entre as árvores caídas e baleias encalhadas pelo furacão, as crianças da mata estavam inquietas. O Tio havia deixado Ding sozinho cuidando do barco e saído para entregar uma posta de tubarão a uma nova cliente daquele lugar. Uma refugiada do furacão, tinha dito ao garoto. Ela havia se instalado em uma cabana mais longe das outras, mas mesmo assim o Tio já deveria ter voltado. Já havia se passado uma hora desde o pôr-do-sol quando, acuado pelos sons estranhos que vinham da maré fétida e das nuvens iluminadas pela lua amarelo-avermelhada, o menino pegou seu mosquete e um dos lampiões do barco e seguiu pelo caminho de tábuas suspensas sobre a água rasa. Seus pés descalços logo alcançaram o caminho que levava até a cabana e, sentindo um gosto ferroso na boca, ele viu que a estradinha de barro úmido ia direto para dentro da selva. Ele sentia os olhares de chama de vela sobre ele, mas entre o medo de entrar ali ou voltar sozinho para o barco, acabou correndo na direção da pequena habitação de bambu e palha, iluminada apenas pelo luar de uma clareira.

Ding nunca chegou até a cabana. Assim que entrou na clareira, um som como um bater de asas o assustou e, buscando sua origem com o olhar, ele viu um par de pernas sentado embaixo de uma figueira. Era apenas um par de pernas, a parte de baixo do corpo de uma mulher envolto em uma saia ensanguentada, com os pés a mostra já em estado de gangrena. Ele podia ver agora as silhuetas pequenas caminhando e engatinhando entre os troncos, e foi tomado pelo impulso de correr até o casebre em pânico. Mas antes de chegar até a porta, ele viu uma luz diferente dos olhares das crianças brilhando entre as árvores. Era a luz do lampião do Tio, e passou pela cabeça de Ding que se conseguissem voltar até o barco poderiam acionar o motor à vapor e fugir dali rapidamente. Quase caindo ao chão em seu súbito desvio, o garoto começou a correr na direção da luz, com as crianças da mata em seu encalço.

Entre as copas de mangueiras retorcidas e palmeiras farfalhentas ele encontrou o Tio, e o terror dessa vez o paralisou como a mordida de uma serpente. O Tio estava suspenso nos galhos escuros, enroscado em vísceras que não eram suas. Sobre ele, estava a metade de cima de uma mulher horrenda, pairando sob imensas asas e movendo suas entranhas como vermes. O rosto gangrenoso e sem vida do Tio foi a última coisa que Ding viu antes de ser puxado por inúmeras mãos pequenas e geladas para dentro de uma figueira, onde encontrou o olhar escuro e vazio da mulher inchada que aquelas crianças chamavam de Mãe.

Introdução – Bedwang sábado, mar 25 2017 

Os pés descalços de Taghan se equilibravam com cuidado no tronco da palmeira curvada como uma ponte sobre o córrego escuro, quase invisível entre as margens cobertas de verde. Cachos de flores vermelhas pendiam dos galhos acima de sua cabeça, que entrelaçados filtravam a luz do sol poente em raios dourados que afastavam os pequenos lagartos e insetos escondidos sob a vegetação. O aroma de jasmim perfumava o ar abafado e quente, e ao terminar de atravessar o rapaz teve que parar para enxugar o suor da testa. O sorriso em seu rosto no entanto afastava qualquer dúvida de que havia valido a pena adentrar aquela parte escondida da ilha, onde seu povo nunca se aventurava.

Ali era o jardim secreto do Arquipélago de Angker, criado pelo Aeon da morte Sidapa como um presente para seu amado, o garoto-lua Libulan. Diziam que no centro do jardim haviam flores encantadas, que abençoavam com sorte e beleza qualquer um que tivesse um amor como o do par de deuses, e era por isso que Taghan havia cruzado vales e montanhas para chegar até ali. Os javalis furiosos e tempestades repentinas do caminho haviam levado embora o escudo de tartaruga-dragão e a bandana vermelha que impedia os longos cabelos negros de caírem sobre o rosto, mas cada vez que desafiava um novo perigo ele sentia estar provando a Sidapa o quanto era digno o que sentia, e nada que o deus da morte colocasse em seu caminho seria capaz de fazê-lo recuar.

O que não o impediu de dar um passo cauteloso para trás ao notar uma forma laranja com listras negras se mover por entre o pomar de bananeiras após o córrego. Apertando a haste da lança e a puxando para trás, Taghan afastou devagar a cortina de folhas e se preparou para enfrentar a fera, quando percebeu que seus olhos haviam se enganado no crepúsculo. Na sua frente, uma nuvem de borboletas alaranjadas esvoaçava baixo no jardim tropical, se juntando a outras amontoadas no chão. O rapaz abaixou sua arma e continuou em frente, mas seu suspiro de alívio foi cortado antes que desse mais de um passo, quando um cheiro acre invadiu suas narinas e as borboletas levantaram voo em sua direção, revelando a carcaça do tigre que haviam limpado até os ossos antes de sentirem a nova presa em seu território.

Agora os pés de Taghan corriam sobre a relva, pisando em ervas aromáticas que confundiam seus sentidos enquanto as borboletas rodopiavam em perseguição. Girando sua lança enquanto saltava e fugia, o guerreiro sentia que Sidapa o conduzia em uma dança mortal, esperando apenas um passo errado para consumi-lo através de seus servos alados. Quando rodopiou até uma clareira, Taghan teve a impressão de que o próprio deus da morte surgia diante dele, sua forma colossal e escura o encarando com olhos ofuscantes. Mas dessa vez não era apenas mais um truque do jardim. De fato ele estava ali, na forma de uma estátua caricata de pedra, com chifres retorcidos como os de um besouro e uma bocarra de dentes afiados que exalava um hálito fresco como chuva.

Ao ouvir o rugido daquela carranca, o rapaz ergueu sua lança em desafio e arremeteu contra ela, se abaixando para escapar dos enxames de borboletas-tigre que vinham do alto como se conduzidos pela estátua. Ele podia sentir o vapor d’água tocar sua pele morena e enxergar a luz do outro lado da garganta de Sidapa, por onde se lançou em um único salto. A pedra fria o envolveu por apenas um instante antes dele se ver flutuando no ar, acima do buraco ruidoso da cachoeira em que o córrego escuro do jardim havia se transformado. Estava livre das borboletas, porém nas margens do abismo a morte ainda o espreitava, com orquídeas carnívoras e plantas-jarro gigantes esperando que ele se juntasse a tantas outras criaturas que haviam encontrado seu fim entre as rochas cobertas de musgo.

Mas Taghan havia aprendido a mergulhar com um dos melhores pescadores que já havia passado pelo arquipélago, o barqueiro nômade de olhos verdes e tatuagens entrelaçadas que lhe havia roubado o coração, e que o guerreiro pretendia reencontrar após receber a bênção de Libulan. Com uma acrobacia habilidosa, ele desceu como uma flecha pelo centro do abismo, escapando das plantas carnívoras que se debruçavam ao seu redor e desaparecendo na neblina da cachoeira. O mergulho foi o último passo de sua dança com Sidapa, e ao emergir das águas geladas ele pensou ouvir um riso gentil e gracioso vindo da coluna de luz prateada que iluminava o lago de lótus-diamantes, começando a desabrochar sob a lua cheia que surgia no céu.

Introdução – Port Vert terça-feira, fev 10 2015 

Chamas saltavam tentando alcançar as estrelas quando ela surgiu entre as varandas e os arcos de pedra. Era noite de festival, e todos os demônios de Port Vert estavam dançando na multidão. Entre malabares de fogo e sombrinhas de renda ela serpenteava, queimando em desejo. Clarinetes e violoncelos tentavam acalmar seu coração, mas ele estava tão seco quanto sua garganta. Quando finalmente avistou a garota com cabelos carmesim, a lua minguante sorriu iluminando o caminho sobre os telhados de estanho. A brisa trazia até ela seu perfume, uma poção do amor com cheiro de terra. Deslizando e rodopiando por entre arlequins mascarados e capitães embriagados, ela a alcançou sobre uma ponte, acima de um desfile de sereias e barcos enfeitados. O leque de penas brancas da moça cobriu seu rosto em um gracejo, deixando apenas a máscara de longo bico espiar como um pássaro gracioso. Com os olhos faiscando por trás da própria máscara, ela se aproximou em um cortejo elegante, os cabelos brancos brilhando como escamas ao luar. Quando seus dedos morenos enfim se entrelaçaram com os da dama, um movimento rápido a trouxe para perto de si, e as duas saltaram para a noite que se refletia nas águas espelhadas.

 

Na outra noite que também festejava além da fronteira, serpentes arco-íris sopravam lufadas de brumas coloridas enquanto bandas de esqueletos tocavam uma marcha animada. Nas margens da água turva vinham se sentar os sapos enfeitiçados com suas asas de morcego, juntando suas lamentações à música do outro mundo. Tomando sua convidada pela mão, ela a conduziu até as ruelas que se contorciam e ondulavam, entre bailes de zumbis e cabarés fantasmas. A noite inteira ela e a garota de cabelos vermelhos dançaram e celebraram a vida nas encruzilhadas dos mortos, cavalgando em carrosséis de ossos e passeando nos barcos estígios com seus motores movidos a almas, rindo dos peixes-demônio que tentavam atraí-las balançando suas lanternas como fogo-fátuo. Quando a sorridente caveira de crocodilo na proa do navio finalmente assoviou seu vapor esmeralda, o jardim se estendia diante delas, com lírios vodu exibindo seu púrpura no portão. A garota de cabelos carmesim já não tinha medo de atravessá-lo, pois seu coração não mais se sentia triste e solitário. Com um beijo apaixonado ela se despediu e prometeu voltar para visitá-la, sempre que a música dos festivais mais uma vez se unisse em uma única e alegre sinfonia.

 

Quando a manhã chegou sobre os gramados escuros no jardim, ela passeou entre as casas de seus protegidos, se certificando de que todos haviam voltado em segurança e estavam dormindo. A garota de cabelos carmesim ainda estava sentada sobre seu leito, e sorriu com cumplicidade em um último aceno antes de ir se deitar, sob o olhar cuidadoso de seu anjo de pedra. Nunca mais voltaria para as águas onde havia se afogado, nem para a ponte onde havia se chocado enquanto dançava sobre um dos barcos a vapor do desfile. Repentinamente, uma lenta marcha de trombones quebrou o silêncio, e olhando para trás ela viu uma das krewes do festival trazendo sua rainha numa caixa forrada em veludo. Dobrões e contas douradas ainda adornavam seu corpo, como enfeites no sarcófago de uma imperatriz. Poderia governar com toda pompa no além agora, mas primeiro sua alma precisaria ser salva da taverna ainda em brasa, onde tentava terminar sua última garrafa da noite anterior. Era isso que ela iria fazer na próxima noite de festa, quando a música animada da procissão que agora seguia de volta para as ruas mais uma vez fizesse com que tanto os vivos quanto os mortos de Port Vert deixassem suas moradas para celebrar e relembrar, na cidade em que as máscaras tornavam todos iguais.

Introdução – Marais domingo, nov 16 2014 

‘No calor abafado da escuridão eles arranham notas desafinadas, embalando uma noite de insônia e tormento’

A Rainha Bruxa de Marais. Era assim que a chamavam nas redondezas. O casebre de madeira parecia tão humilde quanto qualquer outro na região, mas não era preciso muita atenção para que Booziba sentisse que havia algo de especial naquele lugar. Uma trilha escavada no terreno úmido seguia em um rastro de serpente até o topo da colina, onde a cabana banhada pela lua cheia era guardada pelos crânios sorridentes de ancestrais. Crocodilos observavam silenciosos no abrigo das trevas, os olhares faiscantes de um fogo-fátuo convidando para uma morte certa. O doutor feiticeiro ignorava o perigo e seguia em frente, arrastando um pesado malote manchado de lama e sangue. Enxames de mosquitos se amontoavam sobre um pé que escapava da bagagem, pequenas gotas de rubi se fartando do néctar da carne. Mas não tocavam a pele negra de Booziba, pois seu corpo era pintado com ossos mágicos para repelir os espíritos famintos do pântano.

‘Dentro das paredes eles se arrastam invisíveis, até que a luz os chame para uma breve dança de paixão e declínio’

O doutor feiticeiro parou diante da porta bonita ladeada por vasos de planta, e bateu com a ponta de seu cajado. Ela se abriu sozinha dando passagem para um cômodo espaçoso iluminado por velas e perfumado pela fumaça de ervas. Uma mulher de pele escura como a noite estava sentada em uma cadeira de balanço, a cabeça coberta por um lenço colorido. Fumava um cigarro de palha enquanto cantarolava baixinho uma velha cantiga infantil.

Fazendo uma reverência, Booziba se agachou ao lado do malote e o abriu revelando em seu interior um senhor grisalho, preso por firmes amarras apesar do corpo macilento. Ainda estava respirando, mas entorpecido demais até para notar os cupins rastejando sobre seu corpo, as asas mais frágeis do que seus sonhos. Colocando cuidadosamente o homem inconsciente diante da anfitriã, o rapaz a encarou por trás dos dreadlocks em seu comprido penteado moicano e falou com em sua voz arrastada e tranquila:

-Trouxe a oferenda como suncê pediu, Tia Nancy. Esse daí num foi mole de pegá não, mas dá pra deixá suncê satisfeita inté a próxima lua.

‘Em cantos esquecidos do mundo elas caminham no ar, suspensas em fios prateados de astúcia e sonho’

A senhora colocou a mão em uma mesinha próxima e retirou um boneco de palha com as mesmas feições do homem amarrado diante de seus pés, o estendendo para Booziba enquanto falava em uma voz rouca e profunda:

-Sim, meu amado. Sabe o que tem que fazer. Mostra o dom que eu te ensinei e alimenta sua Tia.

O jovem doutor feiticeiro se sentou no chão com as pernas cruzadas, tirando uma agulha do bolso. De olhos fechados ele riscou o ar diante do boneco, até achar um lugar para fincar seu ferrão espiritual. Com a precisão de um cirurgião a ponta perfurou um ponto invisível, fazendo o cativo se contorcer em um súbito espasmo aterrorizado. O homem amarrado começou então a se debater furioso, um peixe fora de seu oceano de angústia e vício. Os olhos se cobriram de cinza enquanto ele gritava obscenidades com uma língua que não era a sua. Booziba permanecia calmo enquanto continuava sua operação, separando o espírito de seu paciente daquilo que o afligia. Em uma convulsão mais forte, um jato de fumaça negra escapou pela garganta do delirante, se agitando em formas monstruosas. Mas o demônio já estava preso em uma teia invisível, uma rede estendida sobre a encruzilhada dos mundos. Agarrado por quatro patas raiadas de aranha, ele foi arrastado até as presas de Tia Nancy. Todos os oito olhos vítreos da senhora tremeluziam de prazer enquanto a loa aranha se extasiava com sua refeição.

Confuso e desorientado, o homem no chão tentava focar sua visão nublada enquanto Booziba gentilmente o soltava de suas amarras, fumando um cigarro de palha enquanto cantarolava uma velha cantiga infantil.

Introdução – Port Smoke sábado, maio 31 2014 

A luz esbranquiçada das lâmpadas a gás brilhava fantasmagórica no restaurante ocupado por cavalheiros e damas de classe. Uma canção indecente saía arranhada do gramofone em forma de sereia, a cauda servindo de amplificador e um dos dedos de agulha. Foi quando o primeiro entrou. Poderia ter passado despercebido com seus trajes de viagem formais, não fosse a pele avermelhada e os traços de um nativo do Povo do Céu. Era jovem, nascido não mais que duas dúzias de invernos atrás, e caminhava confiante até uma mesa na varanda dos fundos. Ali, diante do parapeito que dava para o mar cinzento, um homem elegante de olhos claros e barba castanha comia um caranguejo gigante acompanhado de mercadores ricos do oriente, junto com toda sorte de gente que tinha tempo e dinheiro para servir de enfeite em um evento social. Dois autômatos de guarda se levantaram para receber o recém-chegado, mas o homem na mesa sequer virou o rosto quando escutou ele falar.

-Sou Kisecaw Chuck, terceiro filho de Ahtahkakoop. Sua companhia de mineração invadiu nossas terras e meus irmãos passam fome. Foi um caminho longo e difícil para chegar até aqui.

Os dois guardas mecânicos se aproximaram para retirar Kisecaw. Os reunidos resmungavam sobre o inconveniente enquanto o homem respondia incomodado a acusação.

-Olhe rapaz, eu tenho permissão da Coroa para explorar aquela área. Sinto muito por sua família, mas não vou negociar.

-Eu não vim negociar.

Três disparos, nenhum tempo para reagir. Sangue, fumaça e engrenagens se espalhando no ar. O cano longo da arma de Kisecaw fumegava e as miçangas de seu coldre ornamentado balançavam enquanto os dois autômatos se desequilibravam ao chão e o dono da companhia de mineração tinha a cabeça jogada para trás com o impacto do tiro. Foi quando o segundo entrou. Todos ainda olhavam atônitos para o homem que acabara de ser morto quando a claraboia do restaurante explodiu em uma chuva de brasas e cacos de vidro. Um homem gigantesco caiu por ela, de pintura de guerra nos olhos e chifres de touro nos cabelos trançados. Era Masichuvio, o Guerreiro Vaga-Lume do Povo do Céu. Seguranças, capangas e idiotas que não podiam perder uma briga partiram para cima do invasor, e ele os recebeu com seu par de machadinhas enfeitiçadas, deixando um rastro luminoso de fogo a cada golpe amplo que desferia na multidão enquanto abria caminho.

-Mas o que diacho está acontecendo aqui? – disse uma voz autoritária seguida pela silhueta de um homem em uniforme militar escancarando a porta dupla do restaurante – Abriram as portas do inferno?

O Xerife Conroy ajustou o chapéu sobre sua cabeleira branca e rala, enquanto seus homens se posicionavam a seu lado e engatilhavam os mosquetes. Foi quando o terceiro entrou. Saindo da cozinha, o rapaz de moicano e corpo coberto de pinturas caminhou tranquilo entre o pandemônio de clientes fugindo, mesas virando e garrafas quebrando. Era Ourayi, o Caçador de Bruxos nascido no Bayou. Se posicionando na varanda junto com Masichuvio, ele ergueu a arma que trazia: um simples arco e flecha, e disparou um tiro de aviso diante dos pés do xerife.

-Seus comparsas vão precisar de mais que um graveto para salvar sua pele dessa vez, Kisecaw! – disse o Xerife com um sorriso.

-Permissão para falar, senhor! – anunciou um dos soldados com uma expressão nervosa.

-Permissão concedida, rapaz!

-Tem uma dinamite amarrada na flech…

Estrondo, gritos e fogo.  A explosão arrebentou as vidraças do restaurante e fez o chão tremer enquanto os três companheiros saltavam para o mar. Logo as bombas totêmicas deixadas por Masichuvio e Ourayi no lugar detonaram em uma reação em cadeia, fazendo todo o estabelecimento ir pelos ares. O aviso estava dado, e eles podiam agora retornar para as suas terras, onde estariam preparados para a guerra.

Introdução – Roonock sexta-feira, nov 1 2013 

Música

An old cowboy went riding out one dark and windy day

No topo do cânion avermelhado, a cabana de madeira quase desaparecia em meio a imensidão de rochas que corriam sinuosas entre as sombras daquele dia tempestuoso. O tempo escuro não estava bom para se navegar pelos céu, então o aeróstata Orrell Hargrave amarrou sua aeronave de ar quente nos velhos postes de madeira à margem do precipício e seguiu pela trilha empoeirada até a rústica casinha no meio do nada. Na varanda, sentada em uma cadeira de balanço,  uma mulher o observava por detrás dos seus óculos de metal e couro, uma pistola de pressão descansando elegantemente em seu colo. Com um cumprimento educado, o aviador retirou o chapéu que cobria seus cabelos cinzentos enquanto se aproximava.

-Boa tarde, madame Harriet! Deixei o meu cavalo descansando na entrada da sua propriedade. Não vou me demorar aqui, preciso apenas forrar o bucho enquanto espero a tempestade passar.

Upon a ridge he rested as he went along his way

Harriet apenas sorriu e estendeu a mão para pegar a bolsa de moedas. Relâmpagos riscavam o horizonte ao longe. Um tamborilar seco vinha dos muitos penduricalhos e amuletos indígenas pendurados nas vigas do telhado, sacudidos pela forte ventania. A porta rangeu enquanto o capitão entrava, mas o interior era muito mais aconchegante do que a desolação lá fora. Um sistema de aquecimento a vapor para as frias noites no deserto percorria as paredes com suas tubulações de cobre, perto das quais um cão enorme e peludo se esparramava como um tapete. Hargrave se sentou na mesa de jantar e uma jovem menina sardenta veio a seu encontro, trazendo uma torta. Seus cabelos estavam amarrados em uma trança e ela usava um grande brinco de pena de águia, como os nativos da região.

-Cê deve estar cansado, senhor Fantasma do Vento. Veio aqui atrás do Rebanho? Mamãe disse que passaram aqui perto hoje mais cedo.

When all at once a mighty herd of red eyed cows he saw

Hargrave levantou os olhos do prato incrédulo. Não apenas por a pequena mestiça saber o que ele estava fazendo ali, mas por ela chamá-lo por um nome que não ouvia desde que se consultara por diversão com uma cartomante chapada de ópio. Algo estranho estava em curso ali, mas se havia algo que odiava era parecer supersticioso. O aeróstata apenas assentiu com a cabeça e voltou a comer, porém mal tinha terminado o prato quando os clarões esparsos dos raios lá fora foram substituídos por um intenso e contínuo brilho avermelhado. Ao mesmo tempo em que se levantou, a porta da cabana se abriu e a Senhorita Harriet entrou, trazendo a lustrosa pistola em sua mão. Voltando seus olhos de vidro para a menina, ela falou com uma voz firme e maternal.

-É o Rebanho outra vez, Peta. Fique aqui dentro com o Scruffy e não saia a não ser que eu mande!

A-plowing through the ragged sky and up the cloudy draw 

Com o forte vento sacudindo seu casaco, o aeróstata saiu para a varanda, cobrindo os olhos com seus óculos de aviação. Ele ainda não tinha visto o Rebanho tão de perto, cruzando o céu em uma marcha ordenada como se conduzidos por um vaqueiro fantasma. Pareciam ter sido gerados em alguma oficina diabólica, com suas couraças de metal negro sobrepostas em placas pontiagudas. As engrenagens expostas nas frestas chiavam enquanto sobrevoavam a cabana com um ruído ensurdecedor, deixando um rastro de fogo escorchante. Seus faróis, que emitiam aquela luz vermelha, pareciam os olhos de uma fera monstruosa, e uma fumaça oleosa escapava das chaminés emparelhadas como chifres. Enquanto Hargrave admirava aqueles veículos infernais, a voz de Peta surgiu vinda da cabana.

-Eles são a herança do ferro e da prata, Fantasma do Vento. São o Rebanho do Diabo, nascido da cobiça e do orgulho. Ainda há setenta e sete futuros para você, mas setenta e seis irão se perder se continuar atrás dele.

As the riders loped on by him he heard one call his name
If you want to save your soul from Hell a-riding on our range

Hargrave se voltou na direção da voz e viu a menina quieta na porta entreaberta. A senhorita Harriet também olhou e a repreendeu, mas parecia não ter dado atenção às palavras, se é que havia ouvido alguma. Ela continuou vigiando a casinha até que o último autômato passou, sumindo entre as nuvens com um clarão ígneo. O rastro deles iria logo se perder na tempestade. Ajustando os arneses em seu uniforme, o aeróstata percebeu que estava ensopado de suor pelo calor do Rebanho, mesmo com a chuva fina que caía. Quando tirou seus óculos, marcas de fuligem formaram uma máscara cadavérica em seu rosto. A menina mestiça o observou com espanto e permaneceu em silêncio. Ele apenas ouviu o grito choroso de uma grande águia voando entre as nuvens enquanto caminhava de volta até a aeronave.

-Desculpe menina, mas não estou nesse ramo para ouvir sermão de criança. Obrigado pela ótima refeição, Madame Harriet. Agora, se me dão licença, preciso voltar ao trabalho e descobrir do que esse Rebanho está atrás.

Then cowboy change your ways today or with us you will ride
Trying to catch the Devil’s herd, across these endless skies

Introdução – Porto Negro segunda-feira, jun 17 2013 

O casarão encardido se apoia firme nas margens da ladeira, como um devoto esperando por uma procissão. Em seu quarto mais alto, Korto se senta em um círculo de velas pretas. Uma legião de bonecas assiste do telhado descoberto, penduradas por cordões e anzóis. Marionetes familiares, minkisi, meretrizes de seu bordel espiritual. Entrando em contato com a fronteira do Ayie, o mundo  além, ela lança ao chão um punhado de moedas de ouro, retiradas das mãos ossudas de um capitão zumbi. Nas paredes tremeluzentes, kiumbas voejam em suas mortalhas escuras, farejando a energia ritual. Mas o corpo fechado de Korto impede que avancem além das sombras, enquanto a jovem negra mergulha incólume nas profundezas da percepção.

Seu vestido branco de renda ondula na morada das águas sagradas, limpo de toda sujeira de Orun, o mundo material. Das nascentes cristalinas ela retira a força para seus trabalhos, despertando com os cabelos encaracolados molhados contra o rosto. Com a bênção de Yeye oman ejá,  Rainha do Mar, Mãe d’Água, ela deixa o círculo em segurança e desce as escadas, guiada pelo chamado da noite.

A cidade baixa tem um hálito ébrio. Cachaça barata e fumo de corda. Cada encruzilhada é um tabuleiro de oferendas. Uma corredeira de água salgada misturada aos dejetos do porto corre pelo esgoto aberto, acompanhando os passos apressados da bruxa. Bruxa do cemitério, mambo, ialorixá. No porto ela foi criada, entre a espuma das ondas e o sangue das vielas. Sangue de galinha, de peixe, de gente. O cheiro de carne decomposta, cheiro da infância, a conduz até o pelourinho diante das docas. Rodeado por ratos, o cadáver inchado de um marinheiro se ajoelha diante dela, os olhos fechados em sinal de respeito. O carvão de sua pele ainda está riscado por brasas vermelhas, acesas com açoite, suor e cólera. É onde o trabalho começa.

O marinheiro conta sua história, sussurrando através dos lábios carcomidos pelas formigas. Pescava no mangue quando uma meretriz da cidade alta veio flutuando a seu encontro, sereia desnuda, afogada, cadáver branco. Colocou o corpo inerte em sua canoa apenas para ser surpreendido na margem por um júri silencioso, que executou a sentença sem ao menos se preocupar com uma acusação.

Assustado e injustiçado, o marinheiro não consegue deixar seu frio sepulcro de carne. Korto negocia sua prenda e concorda em ajudá-lo a deixar o Orun, para que não se torne kiumba  e assombre os terreiros. Apanhando do mangue-vermelho um galho virgem ela prepara seu cajado de bruxa. Fetiche encantado, ferramenta dos Exus, tridente de terra e água. Entre bosques tropicais e riachos barrentos ela fareja como onça, espreitando pela mata escura que cerca a cidade. É no caldo salobro que rodopia na lagoa aos pés do morro do cemitério que ela comunga com os desencarnados, descobrindo o verdadeiro assassino. Sorrindo, o bicheiro arrasta mais uma vítima para sua barbearia estreita, preso sem saber na teia invisível de seu próprio carma.

Sanguessugas se remexem nos vidros foscos que preenchem as prateleiras do matador, ansiosas pelo próximo banquete. O toque da prostituta é suave e gelado como cachoeira. Ele escuta uma batida na porta e interrompe seu prazer doentio para afastar o visitante indesejado. Um grito de profundo terror fica preso em sua garganta, sendo substituído na encruzilhada pela gargalhada selvagem de Korto. Ao lado da bruxa, um esqueleto dourado se estende até os telhados, os olhos faiscando como jóias vermelhas. Papa Legba, espírito guardião, Exu Caveira. Pendurada por um dos pés, a alma do bicheiro é engolida como oferenda, aprisionada como um doce néctar na dimensão vodu, onde seu torpor é perturbado apenas pelos insultos da bruxa zombeteira.

Introdução – Ararauma sexta-feira, abr 5 2013 

As tábuas do convés rangiam de forma estranha. Um bom capitão precisa estar atento a todos os sons de seu navio, mas talvez fosse apenas a falta de familiaridade com a nova embarcação. Sim, era apenas isso. Há menos de uma semana tinha sido designado ao posto, e mal conhecia a tripulação.

A partida de Porto Negro foi apressada, já que a Esquadra Delfina precisava do maior número possível de naus trabalhando na costa. Havia escutado muitas conversas no porto, sobre tribos indígenas se aliando aos inimigos windleses. Pensava em suas longas viagens, quando ainda era apenas um imediato a serviço de Aurin, sempre acompanhando o rastro de destruição mútua entre sua nação e  os exércitos de Windlan.

‘Não importa o rumo, a tempestade sempre alcança’ pensou, sorrindo irônico. ‘E desde quando o Capitão Guerra procura por paz?’ disse ao vento, atravessando o passadiço iluminado pela enorme lua cheia, que reluzia abaixo na maré calma.

Em noites como aquela costumava subir até a gávea, para ficar observando o oceano e o horizonte, mas dessa vez estava disposto a passear no convés, e quem sabe encontrar alguém com quem dividir uma garrafa de rum. Pensou na cozinheira cigana, mas ela deveria estar  cuidando de seus afazeres. Foi quando as notas de uma canção em uma língua que não conhecia chegaram aos ouvidos.

A melodia daquela música o lembrava  de sua infância nas ruas salgadas do porto. Procurando a origem do som com a cabeça, encontrou a elfa do mar debruçada sobre a proa, usando uma simples camisola branca de seda. A pele azulada e os longos cabelos verdes como algas não combinavam em nada com o traje humano, mas ainda assim ela estava  à vontade naquele barco, muito mais do que ele.

Certamente era difícil se acostumar a Serullya, a exótica viúva do capitão anterior do navio, que à noite costumava perambular como um fantasma pelo convés. Pelo jeito iria demorar para se acostumar. ‘Seria prudente trocar uma palavra com ela’ pensou, arrumando seu casaco rasgado com largas ombreiras douradas. ‘Ela precisa saber quem dá as ordens na embarcação agora, de qualquer forma’.

Subiu até a proa pela escada estreita, fazendo com que as orelhas da elfa se movessem de leve, atentas. Ela interrompeu sua canção e se virou para encará-lo de maneira serena, cruzando as mãos sobre a cintura e se inclinando para cumprimentá-lo.

-Capitão – disse de maneira educada, mesmo não parecendo muito confortável com sua presença ali.

-Não é tarde para estar fora de seus aposentos? – respondeu Guerra com sutileza, apoiando uma das mãos sobre o parapeito da proa.

-É mais difícil que alguém da tripulação me incomode durante a noite – Serullya respondeu de forma seca, voltando a vislumbrar as ondas batendo no casco.

-Espero que não esteja se referindo a mim, señorita. – respondeu em um tom inquisitivo, como se estivesse repreendendo um marujo.

-Absolutamente não, Capitão. Já fez muito por mim permitindo que eu ficasse no navio – disse com respeito, embora ele soubesse que ela jamais sairia viva de perto daquele velho casco coberto de lodo.

-Sim, eu fiz. – anunciou satisfeito – Mas saiba que essa nau poderá tomar um novo rumo sob o meu comando.

-Não há mudança de rumo para os que navegam acima do mar. – a elfa respondeu o olhando com tristeza, como se perdida em lembranças – Fama. Fortuna. Aventura. Todos vocês procuram as mesmas coisas, não?

Guerra tossiu uma risada, surpreso com a resposta.

-Todo poderoso Netuno! Nisso você está certa. – ele disse, arrumando as mangas do casaco – E algo me diz que não iremos demorar a encontrá-las. Retire-se antes da mudança de turno, madame. Não quero os grumetes me perturbando com histórias supersticiosas pela manhã.

O capitão girou em seus calcanhares e desapareceu nas sombras do convés abaixo. Novamente sozinha, a jovem viúva se inclinou sobre a amurada e acariciou a superfície de madeira carcomida pela maresia, como se estivesse afagando seu próprio marido.

-Não se preocupe com ele, meu amor. – cochichou Serullya para o navio – Ele ainda saberá que você possui seu próprio rumo.

Introdução – Port Jane Guy domingo, out 14 2012 

Pequenas gotas de água escorriam pelos olhos de vidro da boneca, condensadas pelo ar noturno contra seu corpo aquecido. Sua pele de porcelana não podia sentir o frio cortante das ruas de pedra de Port Jane Guy, mas seu coração movido a corda podia sentir a solidão absoluta ao seu redor. No silêncio, a única coisa que ela ouvia era o estalo das engrenagens dentro de seu corpo e o sibilar musical do vapor que exalava como respiração. A boneca nunca antes havia notado a melodia que a mantinha viva, que agora parecia frágil e aflita, amedrontada pela interminável noite de inverno.

O cinza volumoso do céu e o brilho ocasional de uma lâmpada a óleo eram suas únicas companhias na lenta caminhada pelas ruas da cidade portuária. Queria correr, mas sabia que suas pernas se quebrariam antes que pudesse fugir. Pela primeira vez sabia que não queria quebrar, mesmo que não soubesse para onde ir. Ao seu redor, havia muitas casas iluminadas, onde as pessoas haviam se refugiado do frio. Ela morava na maior e mais bela de todas elas, mas não podia voltar para lá. As pessoas que a construíram a tinham rejeitado, velha e enferrujada como estava. Pela primeira vez, sentia saudade de quando podia andar livre pelos salões de festa, recebendo presentes e sorrisos. Estava perdida e confusa, desperta por aquela estranha luz do Farol no Fim do Mundo que havia lhe ofuscado.

Medo. Foi a primeira coisa que havia sentido no sótão empoeirado. Então veio a solidão. Quando desceu as escadas e caminhou pelos corredores vazios vieram as lembranças, e com elas uma aflição insuportável. Cada passo agora era uma batida impiedosa do tempo. Ela sabia que havia peças de relógio dentro de seu corpo, e queria que elas fizessem o tempo andar para trás. Era em vão. Tudo que lhe restava era continuar caminhando na direção do mar, lutando contra as memórias que ficavam claras em sua mente cada vez que a luz tênue do Farol deslizava sobre sua cabeça, como uma força impassível a vigiá-la.

Parada defronte às águas escuras como ébano, ela se viu e pela primeira vez sentiu tristeza. Não era como o espelho de seu antigo quarto, onde suas memórias eram de vestidos de seda e laços de fita. Sua imagem agora era de trapos empoeirados e cachos de cobre emaranhados. Ela estava trincada e quebrada, e sabia que mesmo se consertada jamais ficaria inteira novamente, pois vários pedaços haviam ficado para trás pelo caminho. Ela imaginou como seria afundar naquele líquido abismo oleoso, e tentou pensar no que aconteceria depois que suas engrenagens parassem de funcionar. Não havia mais ninguém para lhe dar corda. Tudo iria desaparecer; cores, sentimentos, memórias. Por não mais do que um segundo ela havia sentido esperança, antes da tristeza retornar em seu lúgubre reflexo.

O mecanismo em seu peito hesitou por um momento, e pela primeira vez a boneca sentiu desespero. Não entendia muitas coisas, e já era tarde demais para entender. Apenas no final ela havia percebido que existia. Queria viver em suas memórias, mas havia algo mais poderoso que a impedia, a mantendo presa na consciência de seu destino inevitável. Era como a luz do farol, e em seus últimos momentos ela sabia que foi no momento em que a viu que seu doce mundo de sonhos havia sido estilhaçado, revelando o esquecimento que a aguardava em suas órbitas de vidro opaco, cujas lágrimas secavam agora à medida que seu corpo movido a vapor se deixava esfriar pelos ventos gélidos do sul.

Então ele parou, e ao último giro da chave de corda em suas costas ela se deixou mergulhar, entregue ao esquecimento antes mesmo de se chocar contra as ondas negras. Na cidade portuária, apenas a luz fantasmagórica do farol continuava a se mover, como um maestro conduzindo a melodia crescente de engrenagens a estalar e vapores a sibilar na fria noite de inverno.

Introdução – Tekeli quinta-feira, jul 12 2012 

Uma escuridão azulada preenchia a caverna submersa, onde o Emissário nadava graciosamente entre estalagmites de gelo. Seus olhos vasculhavam as paredes espelhadas, até finalmente encontrarem a passagem por onde se lançou com um movimento vigoroso de suas asas membranosas. O som da água espirrando ao emergir ecoou pelo silencioso túnel de pedra, desgastado pelos milhares de anos de abandono. Na total ausência de luz, a criatura usou seus filamentos sensoriais para encontrar o caminho até as escadarias que conduziam para a antiga cidade na superfície. Enquanto prosseguia, as extremidades de seus tentáculos tateavam as figuras em alto-relevo nas paredes, imagens de um passado que ele havia testemunhado. Aquele lugar já havia sido uma grandiosa metrópole, habitada por seus irmãos da superfície. As gravuras ainda traziam o contorno dos primeiros Antigos chegando a Keleb como estrelas cadentes, dando início a uma próspera colonização. Um período de paz e esplendor, antes da terrível rebelião que condenou sua espécie a ser caçada pelos próprios filhos pródigos de sua avançada ciência.

O brilho fraco da luz solar atraiu a atenção do Emissário até uma larga torre circular, que se estendia acima até uma claraboia em formato de estrela. Em um dos andares inferiores havia uma porta entreaberta, de onde se podia ouvir o barulho do Cientista trabalhando nos espécimes que havia coletado após a grande hibernação. Embora fosse um dos últimos sobreviventes da casta terrestre, o estudioso mantinha o pragmatismo comum à sua equipe.

De pé no centro da sala, o Cientista parecia ter voltado aos tempos áureos de sua civilização. Cada tentáculo ramificado se ocupava em uma atividade diferente, dando ao pesquisador um aspecto pitoresco em sua simetria radial. Os olhos cor de rubi eram movidos constantemente pelos apêndices da cabeça em forma de estrela-do-mar, analisando com cuidado as amostras e placas de leitura espalhadas no balcão circular ao seu redor. Ainda assim, um deles se voltou ao Emissário, voltando a atenção ao trabalho após um breve instante. Só ao terminar uma anotação com sua pequena haste energizada o Cientista o saudou, falando através da música melodiosa e penetrante emitida por seus orifícios vocais.

É interessante como algumas das criaturas deste planeta sofreram alterações ínfimas nos últimos milênios. Os mares próximos à sua cidade estão povoados por águas-vivas praticamente idênticas às que seu povo comercializava como iguaria.”

O Emissário respondeu em uma melodia mais grave e profunda, enquanto recolhia as asas para passar pela porta do laboratório.

Não são necessárias grandes mudanças quando já se tem o suficiente.”

O Cientista silvou antes de responder.

“Esse conceito se aplica apenas a seres desprovidos de racionalidade, é claro. Se nossas mentes desenvolvidas estivessem presas a este idealismo simplório, jamais teríamos construído prodígios como essa cidade.”

Utilizando como mão-de-obra as criaturas que quase nos destruíram depois” rebateu o outro Antigo.

Isto foi apenas uma falha causada pela nossa distração durante a guerra com os outros colonizadores. Se tivéssemos continuado a direcionar nossos esforços no aprimoramento dos escravos eles jamais teriam se libertado do controle psíquico. E assim teríamos resistido até mesmo à glaciação.”

O Emissário não contestou, embora não concordasse. Os Antigos da superfície confiavam demais em sua tecnologia para resolver qualquer impasse durante a colonização de um novo planeta. Eles eram sempre os pioneiros, os aventureiros que levavam seus esporos aos locais mais inóspitos. E, na maioria das vezes, eram também os que mais sofriam os reveses em épocas difíceis. Ao observar os painéis que recobriam as paredes da sala, ele vislumbrou um retrato da paisagem durante o auge daquela cidade. Selvas exuberantes cercavam suas torres e passadiços, abrigando lagartos bípedes e gigantescas feras. Agora, nada mais restava além de um deserto coberto de gelo.

“Os mares deste mundo ainda são familiares mesmo depois de tanto tempo” – disse finalmente o Emissário – “Mas não posso dizer o mesmo daqui. No fim, este próprio mundo encontrou meios de nos repelir”

Mas nós prevalecemos. Podemos dar início a uma segunda colonização. Você pensa que ainda estamos no final da glaciação, mas a verdade é que nós estamos confinados aqui. Além do oceano existem terras que não estão congeladas, e lá outras formas de vida se desenvolveram. É curioso como a atual espécie dominante descende daqueles primatas sem cauda, que haviam começado a se tornar populares como animal de estimação durante os últimos séculos antes da hibernação”.

“Então este planeta encontrou seu próprio rumo. Se ele desenvolveu uma espécie inteligente nativa, não há mais razão em tentar povoá-lo. Nossa raça não suportaria uma nova guerra. Estamos em desvantagem numérica, e não conhecemos nada sobre o novo ambiente”.

Ainda podemos utilizar os escravos. Meus companheiros estão à procura deles agora.  Aparentemente, após a glaciação eles se esconderam em locais remotos, nas cavernas ou em nossas próprias cidades. Se desenvolvermos uma nova maneira de controlá-los…”

O diplomata não deixou que terminasse de falar. Antes que o Cientista pudesse esboçar qualquer reação, o Antigo da casta aquática se lançou sobre ele, o derrubando atrás do balcão e dando início a uma lenta e violenta luta, cortando com precisão cirúrgica o corpo rígido do estudioso com a ponta de seus tentáculos. Se erguendo vitorioso, o Emissário das Profundezas caminhou de volta até o centro da torre, ainda coberto pelo sangue verde-escuro do Antigo despedaçado. Erguendo suas asas, ele alçou voo através da claraboia, se distanciando rapidamente da cidade agora vazia. Ele não podia deixar que sua raça cometesse os mesmos erros do passado, atiçando os horrores gerados pela ambição contra um mundo agora povoado e contra a sua própria espécie.

Próxima Página »