As crianças da mata sempre eram a pior parte da viagem, mas nada havia preparado o garoto para aquele dia.
Ding já estava acostumado com as longas travessias de barco através da Praia dos Ossos em Biringan até a área rural nos arredores da capital do arquipélago, onde campos de arroz e florestas de bambu dominavam a paisagem. Era ali que o Tio sempre o levava para ajudar a vender o produto da pesca do dia. O garoto achava aquele um trabalho simples porém ingrato, e o fedor do pescado nunca ia embora de suas roupas. Para piorar, naquele dia o mar estava estranho depois do furacão que havia atingido as ilhas, com manchas de um vermelho ferrugem que faziam aumentar o mau cheiro.
O barulho do motor também não estava ajudando o trajeto a ficar menos desagradável. A maioria dos pescadores da região usavam barcos típicos de junco com velas triangulares, mas o Tio insistia em um motor a vapor que o garoto tinha ajudado a fabricar em uma oficina da cidade, um cilindro dilatado de bronze com engrenagens de ferro que usava bambus ocos como canos de escape. Ao menos aquela máquina trêmula tornava a viagem mais rápida, e ajudava a espantar os pássaros Lagan que sempre vinham em bando como moscas até o barco, tentando abocanhar um tentáculo de polvo ou uma barbatana de arraia de dentro da embarcação com seus bicos cheios de dentes. Mas era só desembarcarem nas fazendas e desligarem o motor que os pássaros voltavam a ficar ousados, e junto com eles vinham os caranguejos carniceiros e os sabujos imundos da costa, que Ding e o Tio tinham que espantar com tochas de palmeira ou tiros de mosquete. Mas eles não eram incômodo nenhum comparados às crianças da mata.
Elas começavam a aparecer sempre no final da tarde, espiando Ding por entre as raízes suspensas das figueiras flutuantes ou as folhas carcomidas de bananeira-rosa. Os animais não chegavam perto delas, mas com exceção deles e do garoto, ninguém mais parecia notá-los. Elas pareciam muito novas e vestiam apenas trapos e, no começo, Ding achou que eram apenas crianças curiosas daquela vizinhança humilde. Mas não demorou para ele notar que havia nelas algo de errado e assustador. A pele era cinza como uma nuvem de chuva, e os olhos brilhavam como velas ao entardecer, mais parecendo um par de vagalumes ou fogos-fátuos na beira da estrada. Apesar da ignorância das outras pessoas, elas raramente saíam dos esconderijos de onde observavam, mas Ding tinha a impressão de, às vezes, depois que escurecia, ver pequenas figuras correndo na beira da selva, longe das tochas e dos lampiões dos barcos. Foi em uma dessas ocasiões que ele viu pela primeira vez algo que parecia um adulto perto delas, uma mulher grande e inchada olhando para a janela de uma cabana na beira da água. Uma cabana cujo o dono havia morrido durante o sono, seu tio lhe dissera depois.
E naquele dia, entre as árvores caídas e baleias encalhadas pelo furacão, as crianças da mata estavam inquietas. O Tio havia deixado Ding sozinho cuidando do barco e saído para entregar uma posta de tubarão a uma nova cliente daquele lugar. Uma refugiada do furacão, tinha dito ao garoto. Ela havia se instalado em uma cabana mais longe das outras, mas mesmo assim o Tio já deveria ter voltado. Já havia se passado uma hora desde o pôr-do-sol quando, acuado pelos sons estranhos que vinham da maré fétida e das nuvens iluminadas pela lua amarelo-avermelhada, o menino pegou seu mosquete e um dos lampiões do barco e seguiu pelo caminho de tábuas suspensas sobre a água rasa. Seus pés descalços logo alcançaram o caminho que levava até a cabana e, sentindo um gosto ferroso na boca, ele viu que a estradinha de barro úmido ia direto para dentro da selva. Ele sentia os olhares de chama de vela sobre ele, mas entre o medo de entrar ali ou voltar sozinho para o barco, acabou correndo na direção da pequena habitação de bambu e palha, iluminada apenas pelo luar de uma clareira.
Ding nunca chegou até a cabana. Assim que entrou na clareira, um som como um bater de asas o assustou e, buscando sua origem com o olhar, ele viu um par de pernas sentado embaixo de uma figueira. Era apenas um par de pernas, a parte de baixo do corpo de uma mulher envolto em uma saia ensanguentada, com os pés a mostra já em estado de gangrena. Ele podia ver agora as silhuetas pequenas caminhando e engatinhando entre os troncos, e foi tomado pelo impulso de correr até o casebre em pânico. Mas antes de chegar até a porta, ele viu uma luz diferente dos olhares das crianças brilhando entre as árvores. Era a luz do lampião do Tio, e passou pela cabeça de Ding que se conseguissem voltar até o barco poderiam acionar o motor à vapor e fugir dali rapidamente. Quase caindo ao chão em seu súbito desvio, o garoto começou a correr na direção da luz, com as crianças da mata em seu encalço.
Entre as copas de mangueiras retorcidas e palmeiras farfalhentas ele encontrou o Tio, e o terror dessa vez o paralisou como a mordida de uma serpente. O Tio estava suspenso nos galhos escuros, enroscado em vísceras que não eram suas. Sobre ele, estava a metade de cima de uma mulher horrenda, pairando sob imensas asas e movendo suas entranhas como vermes. O rosto gangrenoso e sem vida do Tio foi a última coisa que Ding viu antes de ser puxado por inúmeras mãos pequenas e geladas para dentro de uma figueira, onde encontrou o olhar escuro e vazio da mulher inchada que aquelas crianças chamavam de Mãe.