Ajna Vidyaapeeth,

Silakhari,

21 de Midsummer, 1694

Minha estimada amiga,

Já faz algum tempo desde nosso último encontro, em sua esclarecedora apresentação sobre o uso medicinal de cinzas de fênix no tratamento de doenças terminais. Gostaria que esta fosse apenas uma correspondência cordial como a muito devo estar lhe devendo, mas o assunto pelo qual escrevo é também o motivo de não ter me comunicado antes. Estes são dias sombrios no Reino de Mahatala, e é somente através da boa vontade do Capitão Arash, um corajoso aeronauta que conheci durante minhas visitas à Costa Lazúli, que esta carta chegará até você na próxima vez em que a aeronave que ele usa para cruzar o mundo visitar a Encruzilhada do Céu em Aurin, de onde sei que chegará até sua sala no Instituto. Penso agora como é engraçado sermos de locais tão próximos, mas termos nos conhecido em uma terra tão distante das nossas. Imagino que isso seja uma amostra daquilo que os sábios mais velhos de minha Universidade vêem com tanta preocupação,  a chamada apropriação de conhecimento do Império Aurinês. Mas também sei das dificuldades pelas quais você passou e espero que esteja vivendo dias agradáveis no Instituto, e que não esteja mais deixando seu chá sempre esfriar.

De qualquer forma, meu tempo é curto e não permite que eu divague demais por outros assuntos. Uma estranha enfermidade causada pelo ópio vem assolando Mahatala, e enquanto se espalha parece corromper a própria terra com sua presença. Aqueles a quem ela reclama são tomados por delírios febris e perdem o contato com a realidade, sucumbindo a pesadelos que perturbam não apenas os chakras como também o corpo físico, escurecendo o sangue e cobrindo os olhos em uma névoa leitosa e acinzentada. Tudo leva a crer que se trata de uma doença com origem mágica, e minhas análises parecem indicar algum tipo de influência de espíritos nocivos, similar aos efeitos da toxina de uma naga sombria ou de uma ferida causada por um rakshasa.

Durante as vistorias que realizei pelo interior, descobri alguns focos isolados desse mal em vilarejos e comunidades tribais. Porém, é aqui na capital de Silakhari que ela se propaga mais rapidamente, especialmente entre os distritos mais pobres. Como mencionei antes, todo lugar que essa enfermidade toca parece ser afetado por uma certa corrupção. Animais deformados e infestados de vermes, aranhas do tamanho de elefantes rastejando nas profundezas de selvas, uma escuridão que rasteja como neblina entre ruas estreitas. É como se os delírios dos doentes se tornassem uma alucinação contagiosa, a ponto de contaminar a própria realidade.

Naturalmente, tentei chamar a atenção sobre o problema ao Rajá, mas sua atenção já está por demais dividida entre a disputa por terras com o Califado de Al-Dasht ao oeste e as colônias da Coroa Windlesa que vêm ocupando ilhas inteiras no arquipélago de Bedwang e estão tomando de maneira agressiva nosso comércio marítimo. A solução para a Febre Cinzenta, um dos muitos nomes que a doença recebeu popularmente, foi relegada a um de seus conselheiros, que como única medida ordenou a construção de casas de quarentena para os viciados enfermos. Estive em alguns desses lugares a mando da Universidade para continuar minha pesquisa sobre a Febre, e o que vi me deixou bastante apreensivo. Não passam de casarões fétidos e escuros onde os doentes são largados para morrer, e o próprio ar parece impregnado pela loucura, com figuras de demônios e estranhos padrões em espiral desenhados nas paredes com a própria imundície do lugar.

A doença foi então apenas temporariamente contida nos distritos em que se estabeleceu a quarentena, tendo seus limites protegidos por membros da Alta Guarda com seus autômatos rudrakshak. Mas como as águas de um pântano que não é drenado, a Febre Cinzenta continua a crescer em meio à decadência, se infiltrando silenciosamente pelas ruas e praças da cidade através do comércio ilegal do ópio que a alimenta. Sem a descoberta de uma cura, aos médicos da Universidade foi recomendado que deixassem que a Guarda cuidasse do assunto. Porém, e aqui me arrisco em dizer, temo que exista algo mais do que uma simples vista grossa ao problema. Isso te digo porque as medidas tomadas pelo Rajá começaram a despertar a desconfiança não apenas de mim como de outros membros da Universidade e da Polícia de Silakhari, o que levou ao início de uma discreta investigação que nos fez enxergar além da cortina de fumaça que cobre Mahatala, e que agora faz com que muitos de nós temam não apenas por suas vidas mas também pelo futuro de nossa nação.

Nós descobrimos um extenso submundo que vai além de atividades criminais, conspirando entre as almofadas de casas de prazeres e as colunas de antigas galerias subterrâneas. Os alvos principais de nossas suspeitas eram os principais beneficiários do comércio do ópio, como os Piratas de Iblis, e descobrimos que de fato eles vêm aumentando sua influência em torno dos distritos de quarentena. Mas eles não são a única presença rondando as multidões de viciados. A Gangue dos Thugs e os Discípulos da Serpente Negra também ampliaram seus territórios, e esses três possuem uma particularidade em comum. O ópio para eles não é apenas uma mercadoria, mas também uma ferramenta usada em seus cultos profanos. Isso fez com que chegássemos à conclusão precipitada de que eram eles os responsáveis pela Febre Cinzenta, mas me parecia muito improvável que três organizações tão distintas estivessem agindo em conjunto.

Foram meus contatos entre os grupos de ciganos do interior que me deram a indicação de que havia algo ainda mais sombrio por trás da degradação de Mahatala.  Eles contam que o Baal de Iblis, a Kali dos Thugs e a Tiamat dos Discípulos nem sempre foram as entidades monstruosas a quem eles veneram, oferecendo morte e decadência em troca de bênçãos sombrias. Elas são uma versão distorcida de sua imagem original, nascidas durante o declínio de civilizações esquecidas pelo tempo. A corrupção da Febre Cinzenta de alguma forma alimenta os poderes dessas divindades caídas, atraindo esses cultistas para Mahatala como moscas sobre uma ferida aberta.

Ao mesmo tempo, e acredito que este seja o fato mais terrível, ela enfraquece a presença e o poder dos outros deuses, ou induz seus seguidores a também moldá-las em formas profanas. Estou ciente de que a magia divina é algo que escapa a um estudo racional, e que muitas vezes aquilo que se assume sobre ela é baseado apenas em crendices populares. Mas não posso deixar de ficar apreensivo com relação às histórias dos ciganos depois de tudo que vi, e você sabe que não consigo fechar meus olhos diante de algo e simplesmente declarar uma coincidência. O fato do Rajá desde que subiu ao trono ter fechado inúmeros templos por todo o país e lançado os sacerdotes à marginalidade me preocupa agora, e não consigo mais acreditar no discurso de renovação intelectual tão amplamente divulgado na Universidade.

Diante desses acontecimentos, espero por dias sombrios, mas não desistirei de lutar pelas pessoas do lugar onde nasci. Te envio junto a esta carta cópias dos estudos sobre a Febre Cinzenta e sobre o que parecem ser novas variedades de ópio recolhidas com a Polícia de Silakhari, que ainda não sei se possuem relação direta com os efeitos sobrenaturais da doença. Minha gratidão será plena se puder compartilhar de seus conhecimentos para acrescentar algo ao que a Universidade já descobriu até o momento. Não por acaso, encontrei registros de incidentes em sua nação no Império Ming que podem estar relacionados aos acontecimentos aqui em Mahatala. Por isso, tome esta carta também como um aviso, pois desconfio que aqueles que estão por trás disso não pretendem restringir suas atividades a uma só nação, e que o Círculo do Ópio, como a Polícia o tem chamado, pode estar agindo em locais tão distantes quanto o próprio Império de Aurin, escondido atrás das suas delirantes cortinas de fumaça.

Que o karma esteja com você,

Sarin Kalenath