O casarão encardido se apoia firme nas margens da ladeira, como um devoto esperando por uma procissão. Em seu quarto mais alto, Korto se senta em um círculo de velas pretas. Uma legião de bonecas assiste do telhado descoberto, penduradas por cordões e anzóis. Marionetes familiares, minkisi, meretrizes de seu bordel espiritual. Entrando em contato com a fronteira do Ayie, o mundo  além, ela lança ao chão um punhado de moedas de ouro, retiradas das mãos ossudas de um capitão zumbi. Nas paredes tremeluzentes, kiumbas voejam em suas mortalhas escuras, farejando a energia ritual. Mas o corpo fechado de Korto impede que avancem além das sombras, enquanto a jovem negra mergulha incólume nas profundezas da percepção.

Seu vestido branco de renda ondula na morada das águas sagradas, limpo de toda sujeira de Orun, o mundo material. Das nascentes cristalinas ela retira a força para seus trabalhos, despertando com os cabelos encaracolados molhados contra o rosto. Com a bênção de Yeye oman ejá,  Rainha do Mar, Mãe d’Água, ela deixa o círculo em segurança e desce as escadas, guiada pelo chamado da noite.

A cidade baixa tem um hálito ébrio. Cachaça barata e fumo de corda. Cada encruzilhada é um tabuleiro de oferendas. Uma corredeira de água salgada misturada aos dejetos do porto corre pelo esgoto aberto, acompanhando os passos apressados da bruxa. Bruxa do cemitério, mambo, ialorixá. No porto ela foi criada, entre a espuma das ondas e o sangue das vielas. Sangue de galinha, de peixe, de gente. O cheiro de carne decomposta, cheiro da infância, a conduz até o pelourinho diante das docas. Rodeado por ratos, o cadáver inchado de um marinheiro se ajoelha diante dela, os olhos fechados em sinal de respeito. O carvão de sua pele ainda está riscado por brasas vermelhas, acesas com açoite, suor e cólera. É onde o trabalho começa.

O marinheiro conta sua história, sussurrando através dos lábios carcomidos pelas formigas. Pescava no mangue quando uma meretriz da cidade alta veio flutuando a seu encontro, sereia desnuda, afogada, cadáver branco. Colocou o corpo inerte em sua canoa apenas para ser surpreendido na margem por um júri silencioso, que executou a sentença sem ao menos se preocupar com uma acusação.

Assustado e injustiçado, o marinheiro não consegue deixar seu frio sepulcro de carne. Korto negocia sua prenda e concorda em ajudá-lo a deixar o Orun, para que não se torne kiumba  e assombre os terreiros. Apanhando do mangue-vermelho um galho virgem ela prepara seu cajado de bruxa. Fetiche encantado, ferramenta dos Exus, tridente de terra e água. Entre bosques tropicais e riachos barrentos ela fareja como onça, espreitando pela mata escura que cerca a cidade. É no caldo salobro que rodopia na lagoa aos pés do morro do cemitério que ela comunga com os desencarnados, descobrindo o verdadeiro assassino. Sorrindo, o bicheiro arrasta mais uma vítima para sua barbearia estreita, preso sem saber na teia invisível de seu próprio carma.

Sanguessugas se remexem nos vidros foscos que preenchem as prateleiras do matador, ansiosas pelo próximo banquete. O toque da prostituta é suave e gelado como cachoeira. Ele escuta uma batida na porta e interrompe seu prazer doentio para afastar o visitante indesejado. Um grito de profundo terror fica preso em sua garganta, sendo substituído na encruzilhada pela gargalhada selvagem de Korto. Ao lado da bruxa, um esqueleto dourado se estende até os telhados, os olhos faiscando como jóias vermelhas. Papa Legba, espírito guardião, Exu Caveira. Pendurada por um dos pés, a alma do bicheiro é engolida como oferenda, aprisionada como um doce néctar na dimensão vodu, onde seu torpor é perturbado apenas pelos insultos da bruxa zombeteira.