Pequenas gotas de água escorriam pelos olhos de vidro da boneca, condensadas pelo ar noturno contra seu corpo aquecido. Sua pele de porcelana não podia sentir o frio cortante das ruas de pedra de Port Jane Guy, mas seu coração movido a corda podia sentir a solidão absoluta ao seu redor. No silêncio, a única coisa que ela ouvia era o estalo das engrenagens dentro de seu corpo e o sibilar musical do vapor que exalava como respiração. A boneca nunca antes havia notado a melodia que a mantinha viva, que agora parecia frágil e aflita, amedrontada pela interminável noite de inverno.

O cinza volumoso do céu e o brilho ocasional de uma lâmpada a óleo eram suas únicas companhias na lenta caminhada pelas ruas da cidade portuária. Queria correr, mas sabia que suas pernas se quebrariam antes que pudesse fugir. Pela primeira vez sabia que não queria quebrar, mesmo que não soubesse para onde ir. Ao seu redor, havia muitas casas iluminadas, onde as pessoas haviam se refugiado do frio. Ela morava na maior e mais bela de todas elas, mas não podia voltar para lá. As pessoas que a construíram a tinham rejeitado, velha e enferrujada como estava. Pela primeira vez, sentia saudade de quando podia andar livre pelos salões de festa, recebendo presentes e sorrisos. Estava perdida e confusa, desperta por aquela estranha luz do Farol no Fim do Mundo que havia lhe ofuscado.

Medo. Foi a primeira coisa que havia sentido no sótão empoeirado. Então veio a solidão. Quando desceu as escadas e caminhou pelos corredores vazios vieram as lembranças, e com elas uma aflição insuportável. Cada passo agora era uma batida impiedosa do tempo. Ela sabia que havia peças de relógio dentro de seu corpo, e queria que elas fizessem o tempo andar para trás. Era em vão. Tudo que lhe restava era continuar caminhando na direção do mar, lutando contra as memórias que ficavam claras em sua mente cada vez que a luz tênue do Farol deslizava sobre sua cabeça, como uma força impassível a vigiá-la.

Parada defronte às águas escuras como ébano, ela se viu e pela primeira vez sentiu tristeza. Não era como o espelho de seu antigo quarto, onde suas memórias eram de vestidos de seda e laços de fita. Sua imagem agora era de trapos empoeirados e cachos de cobre emaranhados. Ela estava trincada e quebrada, e sabia que mesmo se consertada jamais ficaria inteira novamente, pois vários pedaços haviam ficado para trás pelo caminho. Ela imaginou como seria afundar naquele líquido abismo oleoso, e tentou pensar no que aconteceria depois que suas engrenagens parassem de funcionar. Não havia mais ninguém para lhe dar corda. Tudo iria desaparecer; cores, sentimentos, memórias. Por não mais do que um segundo ela havia sentido esperança, antes da tristeza retornar em seu lúgubre reflexo.

O mecanismo em seu peito hesitou por um momento, e pela primeira vez a boneca sentiu desespero. Não entendia muitas coisas, e já era tarde demais para entender. Apenas no final ela havia percebido que existia. Queria viver em suas memórias, mas havia algo mais poderoso que a impedia, a mantendo presa na consciência de seu destino inevitável. Era como a luz do farol, e em seus últimos momentos ela sabia que foi no momento em que a viu que seu doce mundo de sonhos havia sido estilhaçado, revelando o esquecimento que a aguardava em suas órbitas de vidro opaco, cujas lágrimas secavam agora à medida que seu corpo movido a vapor se deixava esfriar pelos ventos gélidos do sul.

Então ele parou, e ao último giro da chave de corda em suas costas ela se deixou mergulhar, entregue ao esquecimento antes mesmo de se chocar contra as ondas negras. Na cidade portuária, apenas a luz fantasmagórica do farol continuava a se mover, como um maestro conduzindo a melodia crescente de engrenagens a estalar e vapores a sibilar na fria noite de inverno.